Um pouco da história

            Sei que essa mistura de ator e boneco na cena não é invenção dos atores fundadores do grupo In Bust. Mesmo aqui no Pará, o Grupo Usina Contemporânea de Teatro[1] havia realizado alguns espetáculos de teatro de animação, com bonecos, utilizando de maneira bem eficiente essa relação do ator-manipulador com o objeto manipulado, dos quais alguns dos criadores do In Bust fizeram parte. Desenvolverei isso mais adiante, pois vamos voltar alguns anos.

            Já em 1810, Heinrich Von Kleist, ensaista alemão, gerou reflexões comparando o boneco ao ser humano na cena, no seu texto chamado Sobre o Teatro de Marionetes. Porém, somente no final daquele e início do próximo século tal ensaio começou a reverberar. Com o modernismo invadindo as criações artísticas, reagindo ao realismo e ao naturalismo, rejeitando uma realidade ideal em busca de uma verdade verdadeira, pelo simbolismo querendo a alma manifesta com seus desejos e imagens, para além das aparências, mostrando, numa fala poética, questões relativas ao indivíduo e a humanidade, os bonecos e as máscaras (re)emergem no teatro para suprir a necessidade de uma linguagem arquetípica, cujas referências estavam nas manifestações de teatro de bonecos quase ritualísticas do oriente e mesmo nos teatros de bonecos mais populares, leves e satíricos, que se apresentavam pela Europa.

            Naquele momento, a obra artística começou a ser considerada na verdade como um artefato, uma criação artificial, o teatro passou a ser feito de representações de idéias e o boneco se fortaleceu como a imagem do ator ideal, livre de impulsos pessoais e, junto com a máscara e a sombra, capaz de representar idéias gerais, universais e mais poéticas. Para Maurice Maeterlink[2], o símbolo não tolerava a presença humana em cena se a obra teatral era simbólica, então, ele usou em cena esculturas, marionetes, máscaras e sombras na substituição do ator.

            Gordon Craig[3] queria um teatro autônomo, uma manifestação da sua subjetividade, que, como obra artificial, não refletisse a realidade de fato. Tinha que ser feita com um material que se submetesse ao seu desejo de artista teatral. O encenador impondo suas idéias. Propôs, então, uma “super-marionete”, como metáfora, como substituto do ator. Na verdade, como sugestão de interpretação para o ator, o gesto cotidiano pelo gesto cheio de significados, sem o exagero da atuação realista.

            Citei apenas dois exemplos (talvez os mais significativos) de inconformismo, por assim dizer, em relação a arte teatral daquele momento em que a realidade ganhava nova percepção, que a arte estava sendo redefinida e que o sujeito ia conquistando sua devida importância como criador. Na busca de um ator ideal, esses dois reformadores trazem ao teatro de boneco a possibilidade de também se refazer e impulsionam, a curto prazo, uma renovação para a arte do ator, referenciando-se, tal como o teatro, ao boneco.

            Artistas, escultores e pintores de vanguarda, inseridos nas artes cênicas, na busca de um teatro mais visual, colocam imitações de bonecos em suas criações e, assim, o teatro de bonecos no patamar das artes. O teatro de bonecos aqui usado para unir a arte plástica à dramaturgia como expressão artística subjetiva. Ponto para o boneco, que, como sujeito fictício, estava inserido em gênero teatral considerado menor e pôde ter os olhos dos artistas de vanguarda voltados para ele e, assim, reformular-se. Ponto para o ator, que saindo do foco da vanguarda precisou aprender a usar o boneco, a máscara, a sombra, o objeto, como instrumentos às novas possibilidades do teatro.

            Nesse contexto, houve também quem destacasse a importância do ator tal como do boneco para a arte teatral, diferenciando-os pela necessidade e valoração, tratando ambos como indispensáveis. Na contramão de Craig, ou talvez em uma via paralela, Julia Slonimska[4] afirma:

 

              Os métodos de criação do ator e do boneco são quase antípodas um do outro, o que exclui toda possibilidade de inveja e de rivalidade. O ator, em cena, realiza sua concepção por meio de seu corpo e lhe dá assim sua cor pessoal. O boneco vai do particular ao geral, mostrando no cruzamento dos fenômenos um motivo eterno, essencial. A criação do boneco é uma síntese artística, a criação do ator é a análise de um personagem poético. Foi essa diferença fundamental que permitiu comparar o ator real ao ator fictício. (Slonimska, Apud Metamorphoses, pg 12

 

            Se o ator vinha sendo comparado ao boneco, o contrário também instigou algumas reflexões e a própria natureza do boneco se fez tema: Sobre a sua matéria inerte, que se faz viva, há as “marcas de vida”, os movimentos imitados dos movimentos humanos, e o que isso provoca ao público quando este esquece ou não estas “marcas”, que o faz rir, dando-lhe um caráter cômico, ou que o faz temer, quando este se torna misterioso; Sobre os limites do boneco, impostos ou determinados pela vontade do artista ou sua imaginação.

            Em meio a tantas reflexões a que o teatro de bonecos foi submetido na primeira metade do século XX, oriundas de um cansaço estético ao qual o teatro de atores passava, este (o teatro de bonecos) viu-se numa avalanche de tendências novas, como se exprimisse um novo teatro. Os bonequeiros, porém, não renovaram seu fazer, de início. Passaram pelas reflexões sem de fato alterarem as atividades normais. A maioria, pelo menos. Das discussões, o que foi mais imediatamente acatado, e talvez a idéia mais fundamental para a renovação do teatro de bonecos, foi a idéia de que o tipo de boneco pode determinar o tema da cena. O contrário só foi percebido (e aceito) um tempo depois, mas a noção da especificidade do boneco estava definitivamente instalada, primeiro como obrigação, depois como critério de qualidade artística. Mesmo não restringindo a atividade dos bonequeiros da época, a maioria acatou essa idéia.

            Necessariamente, os bonequeiros se conscientizaram da natureza específica do boneco e do teatro de bonecos como gênero dramático. E como gênero, foi preciso codificá-lo, defini-lo, evocar as suas qualidades estéticas e teatrais, sua natureza e função artística. Responsabilidade da arte moderna em busca de uma estética subjetiva, trazer o boneco, sujeito fictício, idéia abstrata, para o seio da expressão teatral e, assim adaptar o teatro de bonecos às normas teatrais.

             Os Bonequeiros tiveram que enriquecerem-se da experiência teatral para saírem do popular amador ao ofício aperfeiçoado, com o teatro de atores em seu encalço. Os bonecos das apresentações populares passaram a ser usados como objetos de investigação, para o aperfeiçoamento da sua utilização como expressão teatral artística, por Gaston Baty[5], na França e Sergueï Obraztsov[6], na Russia, contribuindo para o profissionalismo do gênero e dos bonequeiros, entre 1940 e 1950. Os bonequeiros tiveram que adquirir capacidade de interpretar textos, organizar o espaço cênico, ensaiar e experimentar para interpretar o papel e aperfeiçoar sua atuação.

            Mas, para Henryk Jurkowski, não foram as vanguardas e suas reflexões de olho no teatro de bonecos que romperam com o que era praticado nesse gênero artístico. O modernismo foi o detonador, mas “…as tendências poéticas e anti-realistas só se manifestaram com força após a II Guerra Mundial.” (Jurkowski, 2000 p 6-7). O cenário devastador, herdado daqueles anos de desumanidades e mutilações, provocaram um momento de reconstrução social ao qual o desejo artístico também se inseriu.

            As experimentações com teatro de bonecos iniciadas antes da II Guerra e barradas por ela, foram retomadas ao seu final. Porém, contra o isolamento a que o mundo havia sido colocado, dividido pelo temor entre o oeste capitalista e o leste comunista, as experiências só voltaram a ser compartilhadas pelas iniciativas individuais de alguns artistas, que propuseram encontros para o desenvolvimento de uma colaboração internacional que propiciasse o desenvolvimento e a pesquisa. Assim em 1957, Harro Sigel, na Alemanha do Oeste, realiza a Semana de Bonecos de Brunswick; em 58, Margareta Niculesco inaugura o Festival Mundial do Teatro de Bonecos de Bucareste; e no mesmo ano, ocorrem encontros, propostos por Roger Pinon, com a Comissão do Folclore, na Bélgica; desses momentos, surgiram reflexões e mudanças sobre as teorias do teatro de bonecos, suas relações com outras artes e sobre os aspectos estéticos desta linguagem teatral.

            Vários artistas vinham já se inspirando nas idéias de vanguarda, sublinhando a importância do gesto para o boneco, ultrapassando os limites da imitação naturalista do homem, simbolizando e criando abstrações, utilizando metáforas visuais, e, sem se preocupar em respeitar as convenções do teatro de bonecos, mostram personagens que se desagregam em partes, espetáculos sem histórias e sem nenhum boneco figurativo. Um dos exemplos de transgressão às convenções nesse momento de transformação no teatro de animação, colocados por Jurkowski e destacado na leitura de Caroline Holanda sobre a obra deste, é o trabalho de Yves Joly[7]. Na França, a partir de 49, Joly introduz objetos que assumem a função de personagens em situações de acontecimentos humanos, valorizando a matéria como característica destes personagens, o que lhe obriga uma atenção às possibilidades dos objetos e suas (re)significações, colocando o teatro de bonecos totalmente no campo da metáfora. Assim, por exemplo, cria personagens de papel que são cortados e queimados diante do público, retornando ao seu estado de matéria.

            Outro exemplo de transgressão colocado por Jurkowski, um dos bonequeiros alemães solistas, Albrecht Roser, se destacou em Bucareste com o seu boneco, o clown Gustaf, ao desvendar a sua natureza artificial. Serguei Obraztsov conta este momento:

       

        Gustaf era efetivamente uma vedete, mas o mais engraçado eram suas relações com Roser. Certo, via-se Roser puxar o fio para que Gustaf levantasse a mão e tocasse seu joelho, mas isso não impedia de parecer autônomo o gesto de Gustaf. Ele levantava os olhos para Roser tentando atrair sua atenção e indicando-lhe com a outra mão uma pequena cadeira que era preciso aproximar do piano. Ina, a assistente de Roser, a aproxima. Gustaf senta-se e vai se pôr a tocar quando um de seus fios se prende na guarda da cadeira, impedindo-o de levantar o braço. Tal incidente às vezes gera catástrofes e todos os marionetistas o temem. Dessa vez, o perigo é conjurado por Ina que solta o fio. Gustaf se volta e lhe agradece por um movimento de cabeça. Os espectadores reagiram com risos e aplausos. Gustaf era ao mesmo tempo uma marionete – cujo fio se tinha enganchado – e uma criatura viva -, ele agradecia a Ina por tê-lo soltado.

(Obraztov, Apud Metamorphoses, pg 31).

           

            Roser mantém aparentemente os convencionamentos do teatro de bonecos clássico, mas faz lembrar que o animador permanece sujeito criador das ações e vontades do boneco. Com um boneco figurativo, porém estilizado, propõe a dicotomia do ser objeto e ao mesmo tempo a ilusão de uma criatura viva. Desmistifica o sujeito, colocando-o na condição de boneco (objeto) e em seguida, imediatamente, põe dúvidas sobre essa desmistificação. Vários artistas se voltam para o tema existencial do boneco, utilizando a remistificação proposta por Roser.

            Os solistas, muito comuns nos cabarés até os anos 50, com suas iniciativas até então impensadas no teatro de bonecos clássico, instauram um dos momentos mais fecundos para a transformação do teatro de animação. As cenas curtas (esquetes), as vezes sem histórias, passando quase sempre pela demonstração técnica da especificidade do bonecos através da habilidade do bonequeiro, sem preocupação com as regras teatrais clássicas, ditam inovações definitivas no teatro de bonecos.

            Mas não só nas cenas curtas as transformações aconteceram. Os cutucões de Craig e os desejos de mudança do pós-guerra redimensionam o teatro de boneco dramático. As estruturas de grupos regulares, as ambições como gênero teatral artístico no seio das artes espetaculares, as mudanças políticas, provocam metamorfoses também nos espetáculos dramáticos. Na Polônia, Jan Wilkowski[8], do Teatro Lalka desde 50, associando as idéias de Craig sobre o teatro teatral e o épico engajado de Brecht, passa do teatro puro de atores para o teatro de meios de expressão variado. Parte dos valores populares baseando-se no folclore e utiliza a metáfora para solucionar a expressão de algumas idéias.

            Margareta Niculesco, na Romênia, com o Teatro Tandarica a partir de 49, utiliza a matéria como metáfora na elaboração dos bonecos e introduz o ator-animador visível e que assume função determinante no espetáculo (como deus ex-machina, por exemplo). Também se inspira no folclore para retomar valores humanos e, tal como Wilkowski, não está indiferente ao destino da humanidade e a ordem do mundo.

            Jurkowski cita outros artistas, pela Europa dos anos 50 e 60, com as mesmas preocupações e interesses, mas enfatiza as ações destes 2 grupos, que desencadearam uma avalanche de experimentações. Este autor destaca, nesse período, como as mais importantes mudanças nas regras do teatro de bonecos clássico, o abandono do ilusionismo, a revelação dos segredos da criação, não escondendo a artificialidade da obra e, ainda, o abandono de uma linguagem descritiva para uma linguagem poética, fundada em figuras de linguagem, como a metáfora. Ele também aponta a ruptura de um teatro homogêneo pelo compartilhamento do espaço cênico entre o ator e o boneco, ou o ator-animador expondo sua função de interprete do boneco.

            Humberto Braga[9], em sua pesquisa que trata dos Aspectos da História Recente do Teatro de Animação no Brasil, destaca uma montagem considerada pela crítica especializada como divisor de águas e que causou certa resistência para ser considerado teatro de bonecos. O grupo carioca Ventoforte, apresentou em Curitiba, em 1974, o espetáculo Histórias de Lenços e Ventos, dirigido por Ilo Krugli, onde “os atores interagiam com os bonecos numa nova concepção de cena. Pouco a pouco o estilo se alastra e a discussão vai perdendo o sentido” (Humberto Braga, Revista Móin-Móin nº4, pg 253).

            Em Belém, a presença do ator-animador compartilhando a cena com o boneco é marcada, até onde se sabe, pelo espetáculo Virando Ao Inverso, da vertente de bonequeiros do grupo Usina Contemporânea de Teatro, em 90/91, com manipuladores vestidos de palhaços negros, expondo suas tristezas através de esquetes com bonecos de manipulação direta, quase um balé. Mas o Usina ainda realizou o À Deriva[10], em 92, baseado em “Os Livros de Próspero”, do Shakespeare, utilizando a manipulação direta, o contato irrestrito entre os manipuladores e seus duplos, manipulados, mas dialogando entre si e o último da trilogia, Fausto, do Goethe, em 93, com variadas técnicas de manipulação e bonecos que contracenavam com atores. Todos dirigidos por Beto Paiva[11].

            O impulso para essa ruptura, no teatro de bonecos realizado em Belém, foi a passagem dos paulistas da Cia. Cidade Muda[12]. O Espetáculo era o Crak. Todos os futuros bonequeiros da Usina, e mais uns mais futuros ainda, ficaram profundamente tocados, na platéia do Theatro da Paz, numa noite de 1990 e decidiram, no calor daquela emoção, que fariam aquilo.

            Há 12 anos o In Bust teatro com Bonecos propõe esse jogo em cena, do ator-manipulador sempre presente, revelando os suportes da manipulação, dividindo essa cena com o boneco. Jogo que aparece em 13 dos 14 espetáculos montados pelo grupo, talvez como resquício das experiências com o Usina Contemporânea.

   

 


[1] O grupo Usina Contemporânea surgiu no final da década de 80 e atua até hoje. Entre os seus espetáculos mais marcantes estão os de teatro de animação.

 [2] Foi um dramaturgo e ensaísta belga de língua francesa, e principal expoente do teatro simbolista.

 [3] Ator, encenador e cenógrafo inglês, cuja concepção teatral foi caracterizada por seu peculiar anti-naturalismo e pureza cenográfica promoveu notável renovação aos palcos europeus no século XX. Foi um dos pilares do chamado simbolismo teatral.

 [4] Julia Slonimska. Era diretora teatral e escreveu Marioneika (o boneco) em Apollon, São Petersburgo, 1916

[5] Segundo Jurkowski, Baty é uma “lenda” do teatro de bonecos francês, se obstina, como Craig. Durante anos em busca de um teatro artístico de bonecos, por meses se dedicando a investigação da linguagem nos ensaios da uma peça para fazer uma única apresentação, por exemplo.

 [6]  Suas experiências como ator dramático inspiraram suas inovações no teatro de bonecos ao assumir, em 1930, a direção do teatro Central de Bonecos de Moscou. Em 1938 escreveu o O Ator e o Boneco.

 [7] Joly foi um dos tantos bonequeiros solistas que se apresentavam  nos cabarés parisienses.

 [8] Encenador e ator polonês, diretor do Teatro Lalka, associava os postulados de Craig sobre o teatro teatral e a formula brechtiana do teatro épico engajado. Sublinha o caráter artificial e teatral do espetáculo e desenvolve metáforas cênicas.

 [9] Titeriteiro, ensaísta e produtor cultural no estado do Rio de Janeiro. Presidente da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos – ABTB e Centro UNIMA Brasil no período 2004-2006.

 [10] Eu estava em cena neste espetáculo. Sua apresentação no Festival de Canela em 1992 é um dos objetos de estudo na dissertação de mestrado de Felisberto Sabino (ator-animador e dramaturgo, hoje Doutor em Artes pela Escola de Comunicações e Artes da USP), A Poética do Ser e Não Ser, de 2000.

 [11] Um dos fundadores do Grupo Usina Contemporânea de Teatro, foi ator, dramaturgo e diretor.

 [12] Grupo paulista considerado um divisor de águas em São Paulo, formado por Cláudio Saltini, Eduardo Amos.

Respostas

  1. A gente larga de ser ignorantes seus bando de pobres, vão da aaa b… KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

  2. nao gostei da peça kkkkkkkkkkkk’

    • nao to nem aiiiii !


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